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DIVERSIDADE GENÉTICA, CONSANGUINIDADE         E CÂNCER:

QUE  RELAÇÃO É ESTA E  POR QUE OCORRE?

        A partir da década de 1960, dados científicos começaram a demonstrar a relação entre consanguinidade e risco de câncer em pequenos animais. Muitos são os exemplos conhecidos de tumores mais frequentes em animais de raça do que em mixes ou SRDs. No entanto, avanços tanto no entendimento molecular sobre como o câncer ocorre, como no estudo do genoma canino foram necessários para que a relação entre diversidade genética/consanguinidade e câncer pudesse ser comprovada e explicada em cães.

      O câncer é uma doença multifatorial, o que significa que é causada por um somatório de diversos fatores, tanto genéticos como ambientais (de fato, raros tipos de tumor são causados unicamente por fatores genéticos únicos, herdados através das gerações). Assim, na enorme maioria dos casos de tumor em qualquer espécie, é necessário que o indivíduo atinja um somatório mínimo de problemas para a célula. Assim, o desenvolvimento de um tumor na juventude é explicado pelo somatório atingido precocemente na vida, o que é mais comum se o cão já tiver nascido com alguns defeitos genéticos (mutações). Mais frequentemente, cães desenvolvem tumores após os 10 anos, um tempo de vida relativamente longo para que este somatório seja “construído”. De fato, como o câncer é a multiplicação excessiva e anormal de uma linhagem celular, quanto mais tempo uma linhagem se multiplica, maior a chance de desenvolver a doença. Por isso, é uma doença considerada “normal” no fim da vida de qualquer espécie, e para qualquer uma delas, quanto maior for a expectativa média de vida, maior será a prevalência de câncer na velhice. Desta forma, o maior interesse passa a ser a ocorrência da doença no indivíduo jovem: que fatores levam um cão jovem a desenvolver um câncer, e como é possível diminuir este risco?

        Popularmente, muito tem se falado na “culpa da ração”.  No entanto, além de não existir nem um único trabalho científico que comprove a relação entre qualquer componente de rações (nas quantidades em que são empregados) e o aparecimento de câncer, sendo esta uma doença multifatorial jamais poderia ser “causada” por um único fator. Além disto, se este fosse o caso, qual o motivo de a ração não causar o câncer de maneira uniforme em todas as raças? Por que algumas raças têm maior prevalência de câncer do que outras?

          Um artigo científico publicado em uma conceituada revista britânica em 2018 resume diversos dados sobre o assunto e discute de que forma a consanguinidade, ferramenta utilizada historicamente no desenvolvimento de todas as raças, pode estar relacionada com o câncer. Os autores apresentam duas vias pelas quais isto ocorre, denominando de “Via direta” e “Via indireta”, que são discutidas ao final deste texto. Porém, antes será realizada uma breve revisão sobre alguns conceitos básicos de genética, para possibilitar o entendimento. Quatro termos importantes serão revisados: “heterozigoto”, “homozigoto”, “mutação recessiva” e “gene supressor de tumor”.

  1. O que é um cão HETEROZIGOTO?

     Todo cão (na verdade qualquer indivíduo) possui mais de 20.000 genes diferentes em suas células, cada um destes genes tendo uma função diferente para o organismo. Da mesma forma que existem genes que determinam a cor da pelagem e o formato do crânio, também existem genes que possuem a função de “cuidar” para que cada célula se multiplique apenas quando é necessário.

     Acontece que para cada um desses mais de 20mil genes, o cão possui uma DUPLICATA, afinal é “herdeiro” tanto do gene paterno como do gene materno para aquela característica. Geralmente, o "gene mutado" é a forma mais rara na raça, e o "gene correto" é a forma mais comum. Veja a ilustração  demonstrando isso (Fig 1):

fig 1.jpg

Figura 1

fig 2.jpg

Figura 2

2. O que é um cão HOMOZIGOTO?

    Um cão HOMOZIGOTO para uma determinada característica é um cão que possui dois genes IGUAIS nesta dupla: OU dois normais, ou então dois mutados. Tanto a cor destes cães (se o gene for para pelagem por exemplo) como a saúde destes cães (se o gene estiver relacionado com alguma doença), poderão ser percebidas como diferentes.  Veja a ilustração abaixo demonstrando isso (Fig 2)

3. O que é uma mutação recessiva?

    O "gene mutado" é classificado como recessivo quando, NO HETEROZIGOTO, fica “silencioso” ou “escondido”. Muitas vezes, este heterozigoto é chamado, por isto, de “portador assintomático”, ou “fatorado” (tem o gene recessivo para a cor “X”, passando para a prole, porém não apresenta a cor “X”).

    É por isto que este heterozigoto é confundido com o homozigoto normal: tanto faz ter ou não ter a mutação recessiva, a aparência do cão será a mesma. Veja a fig 3:

fig 3.jpg

Figura 3

4. O que é um GENE SUPRESSOR TUMORAL?

    Dentre os mais de 20 mil genes caninos, existem dezenas de genes classificados como “supressores tumorais” que, como o próprio nome diz, possuem a função de regular o número de duplicações da célula, impedindo que o câncer ocorra (veja os exemplos para somente 4 genes – A, B, C e D – nos cães da figura 4 abaixo). Quando todos os genes supressores tumorais estão funcionando corretamente em todas as células do organismo, as mesmas só se multiplicam no momento correto. No entanto, quando vários genes desta classe não estão mais desempenhando sua função, a célula perde o controle de quando é correto se multiplicar, o que é o início do processo tumoral.

    Mutações destes genes são recessivas, o que significa que cães podem nascer heterozigotos para um ou vários genes supressores tumorais, e nunca desenvolver o câncer. É comum cães nascerem com estas mutações, chamadas de herdadas- pois vieram dos pais, e estão em todas as células deste cão. Como estas mutações são recessivas, os heterozigotos não terão nenhum problema (exemplo para os dois primeiros cães – preto e marrom - da Fig 4).

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Figura 4

Acontece que o câncer é uma doença com uma grande diferença das outras, do ponto de visto genético: para que o mesmo ocorra, alguma célula do organismo deve ter algum novo dano de DNA, dano este que será transmitido, a partir daí, para as novas células do tecido, enquanto o restante dos tecidos do corpo permanecem normais (veja a figura 5 abaixo).

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Figura 5

Este novo dano se chama mutação adquirida, e pode ocorrer de maneira aleatória, no processo de duplicação celular, ou pode ser causado por algum agente externo (como radiação, algumas substâncias químicas e alguns vírus).

Se, por azar, esta mutação adquirida ocorrer em algum gene supressor tumoral, poderá transformar a célula de um animal que nasceu “AA” em uma célula “Aa”, o que não será um grande problema, já que mutações nestes genes ficam escondidas (são recessivas). No entanto, se este cão tiver nascido “Aa”, a mutação fará com que esta célula se transforme em HOMOZIGOTA “aa”, ou seja,  esta célula perde a função deste gene, e este cão pode já ter um crescimento anormal do tecido (veja o exemplo do cão branco abaixo – “dd” - na figura 6).

fig 6.jpg

Figura 6

A situação mais preocupante ocorre quando este cão já nasceu homozigoto para alguns genes supressores tumorais, como o cão cinza da figura acima. Se alguma célula do organismo deste cão, que já não tem a função dos genes A (“aa”), B (“bb”) e D (“dd”) sofrer uma mutação adquirida no gene “C” e se tornar também “cc”, esta célula possui uma chance muito alta de perder o controle de quando deve se multiplicar ou não, afinal já tem muitos genes supressores tumorais sem funcionar. 

 

Ou seja: para quantos mais genes supressores tumorais o cão nascer homozigoto, maiores suas chances de manifestar, e mais cedo ocorrerá o câncer.

CERTO: ENTÃO POR QUE A CONSANGUINIDADE TEM RELAÇÃO COM O CÂNCER?

Lembre-se que o maior efeito da consanguinidade é o de aumentar o número genes em HOMOZIGOSE. Se preciso, leia mais sobre isto aqui.

Segundo os autores do artigo científico já mencionado, o aumento da homozigose causado pela consanguinidade está relacionado ao câncer por duas vias: a via "direta" e a via "indireta".

VIA DIRETA:

            Conforme você já deve ter percebido ao ler este texto até aqui, um cão que tenha nascido homozigoto para muitos genes, tem uma chance muito maior de ser homozigoto também em genes supressores tumorais. Para estes cães, qualquer mutação adquirida aumentará a possibilidade da célula afetada se tornar homozigota em mais  um gene supressor tumoral, alterando a taxa de duplicação desta célula, e fazendo com o que o tecido normal se transforme em tumor.

            Lembre-se que existe uma maneira de avaliar para quantos genes, em média, seu cão é homozigoto, e esta maneira é utilizando o coeficiente de consanguinidade ou COI. Apesar do COI determinado através do pedigree não ser uma medida real, e sim uma estimativa (leia aqui sobre isto), é a maneira mais prática que o criador possui de monitorar a consanguinidade em seus animais e em sua criação. Um COI de 5% significa que este cão nasceu homozigoto para somente 5% de seus genes, como no exemplo do cão preto da figura 4. Se pensarmos que caninos possuem 20.000 genes diferentes, este cão será homozigoto para 1.000 genes. No entanto, um cão com um COI de 30% será homozigoto para 6.000 genes e assim, obviamente, a chance de possuir vários genes supressores tumorais sem função nenhuma (sendo homozigotos “aa”, “bb”, “cc”, etc) é muito maior, como no exemplo dos cães da figura 6.

 

         Não existe limite máximo de COI neste caso: a regra é “quanto menor, melhor”. Valores acima de 10% já são considerados muito altos!

VIA INDIRETA:

          A via indireta tem a ver com o sistema imunológico, e sua capacidade de 1) detectar e combater vírus relacionados ao câncer e 2) detectar e combater o nascimento de um câncer. Basicamente, um sistema imunológico eficiente depende de variação genética nas células do indivíduo. Isto porque ele deve estar apto para detectar uma grande variedade de patógenos, e esta aptidão só existe quando existe um grande número de diferentes “tipos de genes”, dentre aqueles que funcionam na resposta imune. Nestes casos, “genes normais” e “genes mutados” de cada dupla,  não diferem por serem funcionais ou não, mas sim porque tem funções ligeiramente diferentes (p.ex: um gene da dupla tem função de reconhecer um patógeno, e o outro um segundo patógeno). Desta forma, se olharmos a figura abaixo, fica claro que o cão da direita possui uma capacidade imunológica muito maior que o cão da esquerda: o cão branco consegue “atacar” QUATRO organismos invasores diferentes (pois tem os “genes” F2, G1, H1 e I2, enquanto o cão preto, possuí a capacidade de responder a SETE patógenos (pois tem os “genes” F1, F2, G1, G2, H1, I1 e  I2). 

Como a consanguinidade diminui diversidade genética, e aumenta o número de genes homozigotos nos animais, um cão com um COI alto será mais parecido com o cão branco da figura, do que com o cão preto.

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Figura 7

EVIDÊNCIAS DA RELAÇÃO ENTRE CONSANGUINIDADE/DIVERSIDADE GENÉTICA E CÂNCER:

- humanos que nasceram de uniões consanguíneas possuem mais chance de câncer de tireóide, pulmão,mama,  colorretal,  além de leucemia aguda e linfoma de Hodgkin.

- duas vezes mais câncer em cães e gatos de raça pura, do que em SRDs ou mixes

- tumores (linfomas) relacionados à infecções com FIV e FelV em felinos são mais comuns em Siameses e em Oriental Shorthair, quem em outras raças ou SRDs

- alta prevalência de câncer em leões marinhos infectados com herpesvírus, e que possuem baixa diversidade genética

- altíssima prevalência de câncer em raposas (mais de 50%) da Califórnia, e de zebras da África do Sul, ambas de populações isoladas com baixa diversidade genética e alta consanguinidade

- populações de ‘diabo da Tasmânia” em grande risco devido a um câncer na face, de origem provavelmente viral, em populações com baixa diversidade genética

- diferentes prevalências de câncer de acordo com a raça: Bernese, Rotweiler, Golden Retriever, Boxer e Labrador sendo as raças mais atingidas (mais de 40% dos cães). Shih Tzu, Spitz, Dachshund e Lhasa Apso sendo as raças menos atingidas 15% dos cães, ou menos).

FONTES CONSULTADAS:

- Ujvari e cols (2018). Genetic diversity, inbreeding and cancer. Proc. R. Soc. B 285: 20172589. (pdf)

- Dobson e cols (2013). Breed-predisposition to cancer in pedigree dogs. ISRN Veterinary Science
Volume 2013, Article ID 941275 (pdf)

- Beuchat, Carol. Cancer - Institute of Canine Biology. https://www.instituteofcaninebiology.org/cancer1.html 

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