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O Problema* dos Padreadores Populares

O conselho mais comum do geneticista para o criador de cães é o de “evitar a síndrome do padreador popular”. Ao mesmo tempo, o conselho mais comum de criador para criador é “reproduza o melhor com o melhor”. Então, o dilema é óbvio e a consequência previsível – os “melhores” cães são os mais procurados, tendo muitos filhotes e se tornando padreadores populares.

A popularidade de padreadores populares

     Há um século Williams Haynes (1915) escreveu sobre o “efeito do padreador popular”, notando que em três raças terrier examinadas por ele – Terrier Irlandeses, Terrier Escoceses e Fox Terriers – aproximadamente 40% dos filhotes tinham como pais somente 20% dos padreadores. Olhando esta época, “popularidade” era bastante diferente de agora. Os machos “prolíficos” da época tinham de 5 a 7 ninhadas, o que seria completamente normal hoje em dia. E surpreendentemente, Haynes pensava que os padreadores populares na verdade faziam um bem para a raça por contribuir para a preservação da variabilidade de características físicas.

     Superficialmente pode parecer que se aproximadamente 40% dos filhotes a cada ano possuem como pais 20% dos cães registrados de uma raça, isto acabaria por resultar em uma uniformidade maior de características físicas. Os padreadores selecionados são todos em maior ou menor grau animais excepcionais, mas acontece que eles não são selecionados por nenhum sistema uniforme.  A maioria deles se destaca em algum ponto específico, mas não nos mesmos pontos ou no mesmo grau, e nem mesmo, em alguns casos, na mesma direção. Este cenário ocorre devido a diferentes características e ideais de cada criador, e o resultado é que desde que poucos machos que não sejam uniformes entre eles deixam um número de filhos maior que a média, eles perturbam a média da raça na geração seguinte e introduzem quantidades anormais de variação. Portanto, o fato de que a seleção artificial fornece para alguns machos selecionados (mas não uniformes) uma preponderância indevida de influência, mantém as características físicas da raça em um status instável. Para mim este parece um fator importante na grande variabilidade sempre percebida entre raças domesticadas.

     Na época, Haynes pensava que padreadores populares fossem uma coisa boa, achando que eles fossem suficientemente diferentes um do outro de forma que eles poderiam ajudar a raça a não se tornar “uniforme demais”.  Como então o ‘padreador popular’ perdeu o status de contribuidor da qualidade do conjunto gênico em 1915, e passou 100 anos depois a ser a origem de um problema a ser evitado por criadores? O que é esta “síndrome” que os geneticistas de hoje estão tão preocupados?

Liberando o mal: DNA

         Para entender o problema, você deve entender um pouco de genética. Você provavelmente sabe sobre mutações – pedaços de DNA que não são copiados perfeitamente pela célula ou são, algumas vezes, danificados por agentes tóxicos do ambiente. Se a mutação é dominante e afeta algum processo vital, ela é removida do conjunto gênico da raça por seleção natural, pois o cão portador da mutação falha em se reproduzir e passa-la adiante. Mas muitas mutações não têm efeitos tão drásticos, porque seus pares de genes/alelos dominantes funcionam perfeitamente. Estas mutações recessivas são silenciosas no genoma e podem ser passadas para a próxima geração da mesma forma que qualquer outro gene, e contanto que a prole tenha somente uma cópia desta mutação, permanecerá saudável e a mutação permanecerá sem efeito algum. A mutação só se torna um problema quando o cão herda duas cópias (uma de cada genitor, sendo então “homozigoto”). Sem ao menos uma cópia do gene/alelo normal, o gene não irá funcionar adequadamente, e a consequência pode variar desde algo relativamente trivial (por exemplo, uma cor diferente de olho, ou pernas ligeiramente mais curtas) à algo catastrófico (por exemplo cegueira, mau funcionamento em alguma rota bioquímica, câncer). 

         Mutações aparecem a todo o momento. Aquelas com efeitos precoces sobre a saúde são removidas do conjunto gênico por seleção natural, enquanto as recessivas, que são silenciosas, permanecem no genoma como uma “carga genética invisível”. Cada cão – de fato, cada organismo – tem sua própria coleção única de genes/alelos danificados que não causam problema algum, uma vez que para cada mutação, está presente também uma cópia normal que consegue fazer o trabalho pelo qual é responsável no organismo.

Nasce uma estrela

      Agora considere o que acontece em uma população de cães de raça. Vamos fingir que este conjunto fofo de cães da primeira figura representa a raça que você cria, com as variações fenotípicas entre eles representando as nuances de características físicas que seriam óbvias para um criador sério. Nós demos a cada cão uma mutação recessiva (representada por um símbolo colorido &, *, ~, , etc...), que é um pedaço de DNA danificado que não é expresso, de forma que não tem nenhum efeito deletério sobre o cão. Se cada cão em nossa população tiver uma ninhada de filhotes neste ano, as frequências destas várias mutações permanecerão as mesmas na população, quando avaliarmos a próxima geração.

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            E agora o que acontece se um destes cães for o campeão de uma grande exposição e se tornar uma “estrela”?  Se for uma fêmea, ela terá uma ninhada de filhotes que serão muito procurados, e provavelmente levará ao menos um ano antes de ser reproduzida novamente.

           Mas se nossa “estrela” for um macho (vamos chamo de “Hank”, o cão apontado com uma seta na figura acima), ele será reproduzido muitas vezes e terá dúzias (ou mais) de filhotes em um único ano. Hank passará metade de seus genes para cada filhote, tanto "genes bons" como "ruins" (as mutações), de maneira que muitas cópias de suas mutações recessivas e silenciosas serão distribuídas para seus filhotes. A figura demonstra o símbolo de um círculo laranja, representando sua mutação recessiva.

         Enquanto as mutações deletérias de Hank estiverem pareadas com alelos normais em seus filhotes, elas não serão expressas e não causarão nenhum efeito sobre a saúde. Mas se você pudesse ver agora o conjunto gênico da raça na nova geração, você veria que agora ele está muito diferente (a segunda figura mostra muitos cães parecidos com Hank, metade deles portando a mesma mutação silenciosa, representada pelo círculo laranja).

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Em somente uma geração, a mutação de Hank passou de muito rara à comum, e agora se encontra silenciosamente na espreita no genoma de dúzias de seus filhotes. Nesta geração, ninguém é melhor que ninguém. Os valiosos filhotes que carregam as mutações recessivas de seu pai aparentam não ter nenhuma diferença daqueles que não carregam.   

A próxima geração...

           Acontece que na próxima geração (terceira figura) nós começamos a ver os primeiros sinais de problemas. Talvez tenha havido alguns poucos cruzamentos de meio irmãos, ou pais com filhas, e alguns filhotes tenham sido produzidos sendo homozigotos para a mutação de Hank (portando duas destas mutações, o que é representado por cães parecidos com Hank agora coloridos de cor de rosa, tendo dois círculos vermelhos , já que a mutação está sendo aparente).  Se esta mutação fosse letal em duplicata/homozigose, estes cães seriam filhotes mortos ao nascimento, ou mesmo durante a gestação. Se a mutação não tivesse um efeito assim tão grave, os filhotes sobreviveriam e teriam alguma doença. Mas os criadores estariam confusos, afinal eles nunca tiveram este problema na linha de sangue, ou até mesmo na raça, então será que não foi somente azar? Ninguém consegue ver que isto é somente a “ponta do iceberg”.

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      Em uma geração mais, contudo, o problema realmente começa. Portadores produzidos na primeira geração passarão a mutação para metade de seus filhotes, e cruzamentos de meio irmãos ou linebreedings de volta no padreador começarão a produzir filhotes afetados. Mesmo enquanto o número de filhotes afetados for ainda relativamente pequeno, o número de portadores já será significante, lembrando que nosso padreador popular provavelmente continua a produzir mais do que seria o seu quinhão adequado de prole em cada geração. Você pode ver onde isto vai dar. As sementes do problema foram plantadas. 

        Além disto, cada ninhada produzida por este padreador popular é uma oportunidade reprodutiva a menos para qualquer outro padreador em potencial na raça, de forma que a frequência de genes daqueles machos não utilizados irá declinar na população. Ao mesmo tempo, múltiplas matrizes estão produzindo filhotes de Hank, que serão meio irmãos de dúzias  de outros filhotes nesta geração. A tentativa de capturar um pouco mais das qualidades daquele padreador que é uma estrela popular provavelmente resultará em alguns linebreedings que reunirão no mesmo casal dois cães portadores da mutação.

Ô-ô, temos um problema...

        Agora chegamos ao momento em que criadores começam a notar que existe um “problema” na raça. Não será necessária uma grande investigação de pedigree para traçar a população crescente de cães afetados, ligados a Hank, nosso padreador popular que agora será culpado por ter introduzido esta nova doença na raça. Geneticistas serão chamados para descobrir a parte defeituosa do DNA de Hank, e desenvolver um teste genético. Então criadores começarão a missão de tentar eliminar os previamente valiosos genes de Hank do conjunto gênico da raça, com danos colaterais proporcionais ao legado genético de todas as matrizes com as quais ele foi reproduzido.  A carnificina genética resultante das tentativas de purificar a raça da mutação infeliz continuará por gerações. O dano final ao conjunto gênico pode ser catastrófico.

        

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        O pior é que este cenário descrito tem acontecido de novo e de novo em raça após raça. É claro, o problema não é o pobre Hank. Se voltarmos no tempo, e pensarmos que o juiz apontou para outro cão naquela fatídica exposição – digamos que tenha sido Rosco que recebeu  o aceno do juiz -  a trajetória da raça teria sido completamente diferente, mas as consequências teriam sido muito parecidas. Rosco também teria deixado seu legado genético para dúzias de filhotes fofos, a metade deles tendo aquela mesma mutação de Rosco, que iria emergir algumas gerações mais tarde para surpreender os criadores da raça.  Eventualmente criadores perceberiam, soariam o alarme, e o esforço para identificar e erradicar a mutação deletéria começaria. O conjunto gênico seria “limpo”, e na próxima vez que um grande campeão aparecesse e fosse um macho, o ciclo iria começar novamente.

O infeliz legado do padreador popular

        O problema realmente infeliz sobre o padreador popular é que as consequências genéticas negativas da sua popularidade não começam a se manifestar por algumas gerações, até que chega um ponto em que a raça começa a manifestar um problema significante. O grande número de doenças conhecidas que são específicas de raças e causadas por uma única mutação recessiva (175 no momento da publicação deste texto; fonte: OMIA) é o testemunho do quanto este tipo de  problema ocorre (de fato, algumas raças atualmente sofrem de diversas doenças recessivas comuns, e não somente uma).

         Obviamente, não são somente as mutações recessivas que são amplamente disseminadas pelos padreadores populares. Qualquer problema genético pode se tornar rapidamente difundido, especialmente na ausência de alguma forma de documentar o aparecimento de uma nova doença, e em casos em que criadores não querem ser completamente transparentes sobre questões que eles efetivamente têm conhecimento. O problema de agressividade dos Springer Spaniel Ingleses, que costumavam ser os cães de família mais populares dos Estados Unidos, aparentemente é genético e foi ligado a um único padreador popular de um grande canil (Reisner & Houpt 2005; Duffy 2008). Vinte e cinco por cento dos Boiadeiros Berneses morrem com uma idade média de 8 anos de sarcoma histiocítico (Dobson 2013), um câncer fatal que aparentemente se originou de um único cão da Suécia, e cuja situação na raça se agravou por um bisneto norte americano deste cão que difundiu os genes do câncer amplamente no conjunto gênico da raça (Dobson 2013; Moore 1984; Moore & Rosin 1986). Muitos Dobermans morrem ainda jovens de um ataque cardíaco súbito causado pela cardiomiopatia dilatada, que pôde ser ligada a somente sete padreadores populares dos anos 50, três dos quais morreram do problema. Uma suscetibilidade séria – comumente letal – de Schnauzers Miniatura à infecção com Mycobacteria avium (denominada de MAC, para Mycobacteria avium complex), aparentemente é ligada a um padreador popular dos anos 80, e é encontrada agora por todo o mundo. Sem dúvida existem ainda muitos outros exemplos similares desconhecidos por mim, ou que não foram registrados. 

        Leroy (2011) identificou padreadores populares como os colaboradores únicos mais importantes para a disseminação de doenças genéticas em cães de raça. Reconhecendo isto, a FCI lançou uma recomendação para criadores de que nenhum cão deveria ter mais filhotes (presumivelmente em seu período de vida) que o equivalente a 5% do número de filhotes registrados na raça durante um período de 5 anos, e um número de Kennel Clubs nacionais têm seguido esta regra (p. ex., Finlândia). Mas sem a cooperação de associações de raça, ou na ausência de alguma autoridade que cheque os registros e esteja na posição de policiar e aplicar uma restrição à criação, é difícil ver como uma recomendação teria qualquer efeito nas práticas atuais de reprodução (Qual período de 5 anos? Que população de cães – a raça inteira no mundo, ou somente os cães do país? Quem faria a contagem – o proprietário do padreador, o proprietário da matriz, a associação de raça, o Kennel Club?).

 

        As únicas pessoas que se beneficiam da explosão de doenças genéticas específicas de raças são os geneticistas moleculares, que descobriram que cães são animais de pesquisa ideais porque muitas destas doenças ocorrem em seres humanos (Ostrander 2012). No entanto, por mais que cães possam ser úteis e fascinantes para o cientista, eu suspeito que eles iriam preferir que cães tivessem vidas mais longas e saudáveis, livres de doenças genéticas.

Referências científicas sobre o assunto: 

  • Dobson, JM. 2013. Breed-predispositions to cancer in pedigree dogs. ISRN Veterinary Science 2013: (doi: 10.1155/2013/941275)

  • Duffy, DL, Y Hsu, JA Serpell. 2008. Breed differences in canine aggression. Applied Animal Behaviour Science 114: 441-460.

  • Haynes, W. 1915. Effect of the popular sire. Journal of Heredity 6: 494-496.

  • Leroy, G. 2011. Genetic diversity, inbreeding and breeding practices in dogs: results from pedigree analyses. Veterinary Journal 189: 177-182.

  • Leroy, G & X. Rognon. 2012. Assessing the impact of breeding strategies on inherited disorders and genetic diversity in dogs. Veterinary Journal 194:343-348.

  • Moore, PF. 1984. Systemic histiocytosis of Bernese Mountain Dogs. Veterinary Pathology 21: 554-563.

  • Moore, PF & A Rosin. 1986. Malignant histiocytosis of Bernese Mountain Dogs. Veterinary Pathology 23: 1-10.

  • Ostrander, EA. 2012. Both ends of the leash- the human links to good dogs with bad genes. New England Journal of Medicine 367: 636-346.

  • Reisner, IR. & KA Houpt. 2005. National survey of owner-directed aggression in English Springer Spaniels. Journal of the American Veterinary Medical Association 10: 1594-1603.

  • Wellman, R. & J. Bennewitz. 2011. Identification and characterization of hierarchical structures in dog breeding schemes, a novel method applied to the Norfolk terrier. Journal of Animal Science 89: 3846-3858.

*NT: no texto original, a Dra Carol Beuchat utiliza no título o termo "POX". No entanto, a sua tradução literal para "varíola" não se adapta adequadamente para este assunto na língua portuguesa, motivo pelo qual foi substituido como "problema". 

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